domingo, 18 de outubro de 2009

SELEÇÃO HOLANDESA COPA 74 - 1ª PARTE



ARTIGO DO JORNAL O GLOBO - 9 DE JULHO DE 1994

"Desde a famosa seleção húngara de 1954 que a Europa não produzia uma equipe como aquela - lá se iam 20 anos de futebol. Nem mesmo a bela seleção francesa de 1958 podia ser comparada a ela. E vinha de um pequeno país sem tradição no mundo seleto e exigente do esporte - a Holanda. Tão bom era o time que, mesmo sem conquistar o título da Copa de 1974, na Alemanha Ocidental, entrou para a história como o Carrossel Holandês, que mudou muitas das concepções do jogo até aquela data e abriu novos caminhos para o espetáculo do futebol. Na verdade, não foi a seleção da Holanda que começou a chamar a atenção da crônica européia, mas o time do Ajax, que na época já era tricampeão de clubes, sendo que no último título com uma eloqüente goleada sobre o Bayern Munich. O Ajax era a base da seleção holandesa; o Bayern era a base da seleção alemã. Muitos cronistas viram com perspicácia que ali podia estar o prenúncio do que seria a final da Copa de 1974. O Ajax tinha um jogador que a unanimidade daqueles cronistas considerava o novo fenômeno do futebol - Johan Cruyff. Sabia fazer de tudo, era uma espécie de homem-equipe. Tinha, também, um treinador chamado Rinus Michels, inteligente, sofisticado e ambicioso, que sonhava em revolucionar o futebol. Michels tinha em mãos, na seleção, um material capaz de ajudá-lo a realizar seus desígnios: Jongbloed, goleiro enorme, de meter medo nos atacantes; Suurbier, na época o melhor lateral-direito da Europa; Krol, zagueiro admirável em qualquer época; Van Hanegen e Neeskens, incansáveis no trabalho de ligação entre a defesa e ataque; na frente, dois pontas velozes e hábeis, Rep e Resenbrink; e no meio deles, Cruyff.

O segredo dessa equipe - e aqui entra Rinus Michels - , é que a posição dos jogadores servia apenas para obedecer à formalidade da escalação, uma vez que, começado o jogo, ninguém mais tinha posição nenhuma. Era, em suma, o próprio carrossel. A primeira vítima foi o Uruguai, que perdeu de 2 a 0 como podia ter perdido de oito ou de quinze. O jogo foi um dos maiores massacres táticos de que o futebol tem notícia. Basta dizer que, lá pelas tantas, Pedro Rocha, o clássico e elegante Pedro Rocha, dominou uma bola no peito e logo olhou para o chão - pois que uma bola dominada no peito por Pedro Rocha deveria estar agora submissa aos seus pés. Mas não estava, e Rocha ficou alguns segundos olhando para o chão, perplexo, à procura da bola. No curtíssimo trajeto entre o peito e os pés de Pedro Rocha, a bola lhe havia sido roubada por três ou quatro holandeses que estavam com ela lá adiante, tramando um ataque. A Holanda jogava assim, defendendo e atacando em ondas, se assim se pode dizer: quatro ou cinco corriam na mesma bola, contra apenas um adversário, e saíam com ela como um bando de colegiais em alegre pelada de recreio. Alguns observadores viram ali um meio desorganizado e irresponsável de jogar. - Eles não sabem - respondia Cruyff - que toda essa desorganização é meticulosammente ensaiada. E era mesmo. A seqüência de jogos da Holanda consagrou aquele estilo novo, vibrante, mortalmente eficaz e objetivo - uma harmoniosa mistura de futebol-força com futebol-arte. Ao chegar à final, a Holanda se orgulhava de uma campanha inigualável naquela Copa: seis jogos invictos, 14 gols a favor, apenas um contra - e era considerada favorita.

Alguns observadores, porém, conhecedores dos labirintos traiçoeiros de uma Copa do Mundo, viam esse favoritismo com reservas, porque do outro lado estava a Alemanha Ocidental, uma equipe consistente o bastante para fazer frente a qualquer adversário. No seu comando estava Helmut Shoen, discípulo direto de Sepp Herberger, responsável pela vitória de 20 anos atrás sobre a fantástica seleção húngara. Assim como Rinus Michels, seu adversário, Shoen tinha à mão um punhado de grandes jogadores: o goleiro Sepp Maier, então o melhor de todos; os excelentes laterais Vogts e Breitner; um forte meio de campo formado por Hoeness, Bonhof e Overath, este último um craque completo; na frente o maior artilheiro da história das Copas, o centroavante Gerd Müller, de precisão cirúrgica na hora de finalizar em gol; e, no plano mais elevado que fosse possível, o capitão Franz Beckenbauer que, de tão altivo e elegante no seu relacionamento com a bola, dizia-se que podia ter sido ele o próprio inventor do futebol. Às vésperas da grande decisão, na confortável concentração holandesa, Rinus Michels saboreava com justiça e prazer, cercado de repórteres do Mundo todo, o sucesso do seu trabalho. Indagado por um dos jornalistas sobre os fatores a que atribuía o êxito de sua equipe, remexeu-se na poltrona com um sorriso que não deixava dúvidas sobre a glória que vivia naquele momento:

- Primeiro - respondeu depois de alguns segundos - , por que a seleção holandesa possui grandes individualidades. Segundo por que essas individualidades se adaptam perfeitamente ao esquema de jogo coletivo. E terceiro, por que tem um técnico chamado Rinus Michels.

Naquele instante de orgulho infinito, Michels há de ter-se esquecido de que a Alemanha Ocidental tinha um técnico chamado Helmut Shoen, que lhe preparara uma armadilha para o dia seguinte, 7 de julho de 1974, no Estádio Olímpico de Munique, palco da grande final. Vogts seguiu o rastro de Cruyff em todos os cantos do campo, a ponto de ter Cruyff jogado boa parte dos 90 minutos como zagueiro. Maier fez defesas sensacionais para garantir o resultado. Beckenbauer, a princípio de líbero, acabou por converter-se em maestro, regendo os movimentos de seus companheiros. E Müller decidiu o jogo com seu faro de gol: 2 a 1 para a Alemanha.

Restaram para a Holanda dois consolos: o primeiro, de ter perdido para uma grande equipe, que atuava em sua própria casa, com o calor de sua torcida; o segundo, de ter entrado para a história do futebol como um alegre carrossel de colegiais, que tinham o prazer de jogar futebol."

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